Livro em
estudo: Nos Bastidores da Obsessão – Editora FEB - 1970
Autor:
Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografia de Divaldo Pereira Franco
A013 – Cap. 2 – Socorro espiritual –
Segunda Parte
Não havia, porém, tempo para
meditações mais amplas.
O Benfeitor Saturnino, em breve
alocução, explicou a finalidade da reunião, elucidando que se pretendia trazer
à lucidez o perseguidor de Mariana para um reencontro na esfera do espírito,
de modo a tentar-se uma conciliação, esperando-se que a Misericórdia Divina
amparasse os propósitos do grupo ora reunido.
Os circunstantes se recolheram a profunda
meditação, conduzidos pela voz pausada e grave do Mentor que se encarregou de
orar ao Mestre, rogando-Lhe socorro para o labor em vias de desenvolvimento. Em
seguida, aproximou-se do servo vingador e, aplicando-lhe passes de dispersão
fluídica, despertou-o, presto.
A Entidade, vendo-se em uso da
razão, circunvagou o olhar algo esgazeado e, reconhecendo Mariana ali presente,
como se fora tomado de estranho horror, intentou precipitar-se sobre ela,
brandindo os punhos cerrados, com os lábios em rito macabro, dos quais
escorria pegajosa substância escura, nauseante. Detido no impulso incoercível
pelos auxiliares e vigilantes, recorreu aos impropérios violentos, como se
desejasse, através das palavras candentes do ódio, conseguir o desforço acalentado
por muitos anos a fio.
— Tenho-te procurado — gritou,
colérico —, como justiceiro cuja sede de punição se converte em tormento sem
nome. Azucrinado, somente há poucos anos consegui localizar-te, no mesmo antro
em que o infame destruidor da nossa paz reside. Agora que os tenho a ambos
nas mãos, não os deixarei fugir. O meu desforço se fará com terríveis
consequências. Eu os farei sofrer comigo as mesmas dores que esta eternidade me tem infligido sem
repouso...
Mariana, escutando aquela voz,
desejou fugir, desorientada, no que foi obstada por Saturnino, diligente.
— Aldegundes — vociferou o indigitado
sofredor
porque me desgraçaste? Que te fiz eu para sofrer o
abandono ignominioso e a humilhação que me impuseste diante de todos os nossos
amigos? Aldegundes, Aldegundes, não te dei o amor honrado e puro de um homem
trabalhador? Porque me infelicitaste, destruindo minha vida?...
Acompanhando as palavras doridas,
lágrimas grossas escorriam-lhe abundantes dos olhos. Em choro convulsivo
prosseguiu:
— Construíamos a nossa felicidade
entre tantos sacrifícios e tu, apesar disso, não te apiedaste de mim,
arruinando-me sem compaixão! Porquê? Oh! desgraça, não me conformo! Mesmo que
escoem todas as eternidades, o teu
crime me corroerá dolorosamente. Minha alma dilacerada a cada instante e o meu
coração transformado em massa de chumbo em brasa perderam a razão de ser,
quando meu cérebro vencido por todas as desesperações não consegue senão pensar
em vingança... Eu que tanto te amava!... Porque fugiste, louca? Não sabias que
a um homem não se engana? Ignoravas que ninguém foge da consciência? Olha-me
bem! Vê ao que me reduziste? Olha, olha, infeliz!...
Nominalmente convocada, Mariana
desferiu terrível grito e caiu dominada por estranhas convulsões. Assistida de
perto pelos assessores de Saturnino, que a esse tempo amparavam o interlocutor
desvairado, tomou o aspecto de louca e com facies
de singular horror, parecendo divagar, contestou:
— Sim, recordo-me de ti e
te odeio, também... Sempre infeliz, que tenho sido e que sou?! Onde estou,
agora que desvairo? Porque esses fantasmas que me torturam e não me deixam?
Porque a morte não me consome? Oh!...
Gargalhada repulsiva estourou nos
lábios da doente, como se a razão de todo lhe fosse retirada, enquanto prosseguia:
— Abandonei-te, sim. Fui
amaldiçoada por mim mesma, mil vezes, e te amaldiçoei, também. Todos me
amaldiçoaram. De todos nós não sei qual o mais desventurado. Entretanto, odeio
mais aquele que me fez consumir as esperanças de mulher e os sonhos de louca,
no triste hospício de Haarlen... Não sabes que voltei a buscar-te? Agora é
tarde demais... Não me recordo mais... Não sei... somente sei que agora estou
perto dele e hei de fazê-lo pagar. Oh! alucinação, que digo? Onde estou ?...
Nesse momento, Saturnino acercou-se
da jovem e lhe falou, bondoso:
— Estás diante da própria consciência,
sem os crepes do olvido. Não és a Mariana de hoje, frustrada e inquieta, mas a
Aldegundes de ontem, desvairada, sofredora. Aqui estamos todos para responder
aos ditames da consciência necessitada de reparação...
— E quem pretende julgar-me? —
interrompeu, irada.
— Ninguém, minha filha —
elucidou, confiante
pretende julgar-te ou examinar sequer os erros alheios,
erros que todos temos. Reunimo-nos, no entanto, com o fim de corrigir
impressões e estabelecer nova linha de conduta, antes que postergarmos as
responsabilidades para os dias sombrios que nos aguardam.
— Mas sou infeliz —
apostrofou —, ninguém o vê? Sou acusada e ninguém me escuta...
— Não nos encontramos num
tribunal — acudiu, solícito, o Instrutor —, mas num santuário de orações,
templo e hospital, sob a orientação de Jesus-Cristo, o Amigo Incondicional de
todos nós...
Esbravejando, de inopino, o algoz
voltou à carga:
— Acabemos com a farsa.
Sou eu a vítima de todos esses cruéis verdugos da minha vida. Quem se atreve
a interferir em meus problemas? Não necessito de ajudante nem de intermediário.
Tenho carpido a dor infernal a sós e não será agora que terei urgência de que
alguém me ajude, no momento em que culmino o meu plano com o êxito que logo
mais terei. Façam silêncio para que eu possa relembrar, a essa espoliadora da
felicidade alheia, todo o mal que me fez.
Acercando-se dele, Petitinga
envolveu-o em sua carinhosa vibração, enquanto o médium Morais, convidado pelo
Instrutor, aplicou passes em Mariana, cuja aflição parecia desequilibrá-la.
Envolta em fluídos negros, congestionada, praguejava ensurdecedoramente.
Dona Rosa e Amália, devidamente
amparadas, embora sem compreenderem toda a extensão da ocorrência, oravam em
pranto silencioso. Saturnino convidou a genitora a tomar nos braços a filha
aturdida, e, enquanto o fazia, a veneranda mulher banhada de tênue luz
cooperava com Morais, conseguindo acalmar a jovem, que lentamente recobrou a
serenidade.
— Vamos à verdade —
estrondou o acossador de Mariana —, quero a verdade dos fatos. Se aqui estou
subjugado por demônios vingadores que ainda não saciaram a sede na minha
infinita desdita, apelo para as forças do Dr. Teofrastus para que elas me amparem.
Justiça, quero, nada mais! A minha vingança tem a força da minha justiça. Não
sou um desalmado: sou um justiceiro que retorna em nome da verdade. Reitero o
apelo, portanto, ao Dr. Teofrastus, o meu benfeitor. Onde se encontra ele?
— Inutilmente — esclareceu Saturnino —
você rogará auxílio a quem vive à míngua de socorro. O irmão Teofrastus está
interditado de penetrar neste recinto. Aqui somente têm acesso aqueles que vêm
em nome do amor e os que são carecentes de amor, como você, meu irmão...
— Recuso seu amor e sua
piedade — estrondou, rebelado. — O que desejo...
— O que você deseja — disse, sereno, o
Amigo Espiritual — é paz e amor para refazer o que destruiu; infelizmente você
não sabe que também tem necessidade de perdão, devendo, antes de tudo, porém,
perdoar. Aldegundes fez-se seu algoz, sem dúvida, mas sempre foi sua vítima.
Você fala em deserção do lar, em honra masculina... Onde, porém, estão sua
honra e sua fidelidade ao lar? Constituiu-se a mulher apenas instrumento para
a paixão do homem ou somente o veículo do prazer ilusório? E os sentimentos
femininos? Que fez você para estancar as lágrimas de soledade que ela
experimentava ao seu lado? Quantas vezes parou a escutá-la? Que cabedal de
tempo lhe ofertou? Desejava dar-lhe uma fortuna, sim, olvidando dar-lhe
segurança íntima, assistência afetuosa... Não, meu amigo. Aqui não se
defrontam, como você deseja fazer crer, vítima e algoz; enfrentam-se duas
vítimas de si mesmas, iludidas nos seus loucos ideais terrenos. Os dias da Neerlândia
passaram; no entanto, encontram-se vivas, encravadas na terra das lembranças,
as raízes dos erros de todos vocês, erros que necessitam retificados. Prepare-se
para refazer o caminho, não para aplicar a justiça, justiça de que todos temos
necessidade...
— Então, você conhece — bramiu,
provocando compaixão, o interlocutor, em soluços — o meu drama? Porque se
refere à Neerlândia? Como sabe que eu procedo do Haarlen? Saberá você, que essa
mulher...
— Sim, meu irmão — retrucou, o
Instrutor —, eu sei... Da mesma forma, porém, que a lei de Deus está Inscrita
na consciência de cada homem, os nossos atos estão gravados em nossa mente que
não morre. Conhecemos, sim, a sua história e o drama de Aldegundes, que você
agora deseja destruir, tarefa essa que não conseguirá, positivamente porque o
Senhor da Vida já pronunciou o: basta!
— Mas ela me traiu e me abandonou —
baldoou.
— Sabemos disso — redarguiu. — Mas
sabemos, também, que enquanto se preparava o pôlder (1) na Amsterdão
setentrional, fascinado pelas perspectivas de adquirir largas faixas de terra
para pastagens de gado, não obstante as imensas plantações de tulipas que já
possuía, deixava-a quase abandonada, por longos meses, enquanto durou a
dessecagem do lago que existia entre Haarlen, Amsterdão e Leida, trabalho esse
que durou de 1837 a 1840... Sentindo-se só, inexperiente e sem forças para a
luta contra as paixões da própria natureza, não resistiu às constantes
investidas de Jacob, terminando por deixar-se arrastar ao rio de lama que a
conduziu, mais tarde, à loucura...
— Não me traga à memória —
estrilou — o nome de Jacob Van der Coppel, o infame ladrão da minha felicidade.
Encontrei-o, também. A princípio tüdo me parecia estranho. Por largos anos eu
sentia a presença dele e me sentia ao seu lado, embora as diferenças que
apresentava. Estava metamorfoseado... Tudo me era, no começo, irreal, até que
fui conduzido ao Dr. Teofrastus, que me ofereceu excelentes explicações, elucidando
a volta do bandido ao esconderijo do corpo, ensinando-me, porém, como eu
poderia supliciá-lo e vingar-me, o que venho fazendo com verdadeira infâmia...
— Realmente — acrescentou,
Saturnino, sem se perturbar — Jacob retornou à carne, revestido pela indumentária
com que agora se identifica por Mateus. O leviano de ontem é o atormentado de
hoje, caminhando pela estreita rota da autopurificação... Recebeu nos braços,
pelo mesmo impositivo, aquela a quem infelicitara, e a sua presença é-lhe
desagradável suplício. Embora não consiga recordar, experimenta as vibrações
que lhe são afins, conquanto a aversão que lhe apossa, fazendo-o desditoso.
Ninguém engana a vida. O código da Justiça acompanha o infrator, nele plasmando
a necessidade de ressarcimento legal... Daí a necessidade de aquele que se crê
espoliado perdoar...
— Mas eu não conseguirei
perdoar — vociferou o surpreso cobrador. — Tudo aqui hoje são surpresas para
mim. Atino com dificuldade o que ocorre e tenho turbado o raciocínio. Quem são
os senhores, que me molestam já por segunda vez? Será isso um pesadelo cruel,
daqueles que de mim se apossavam anteriormente, quando me perdera e me
desgraçava nos despenhadeiros da Alucinação...
Em se referindo à região punitiva em
que se surpreendera, após o suicídio nefando, o atônito interlocutor se
transfigurou repentinamente, e, parecendo sofrer indescritíveis padecimentos,
se pôs a debater, chorando copiosamente. Vendo-o alucinado, reduzido a
condição de escravo de si mesmo, não havia como deixar de crer que todo
perseguidor é alguém perseguido em si mesmo e que o vingador é somente um
espírito macerado pelas evocações da própria delinquência...
O Assessor de Saturnino, solícito,
acudiu presto o indigitado sofredor, aplicando-lhe passes reconfortantes, de
modo a desembaraçar-lhe a mente dos fantasmas
da evocação dolorosa. Depois de demorada operação magnética, em que eram
dispersadas as energias venenosas, elaboradas pelo baixo teor vibratório do próprio
Espírito, este se refez paulatinamente, recobrando alguma serenidade.
A viciação mental, resultante do
pensamento vibrando na mesma onda, gera a idéia delinquente na “psicosfera
pessoal” do seu emitente, aglutinando forças da mesma qualidade, por sua vez
emanadas por Inteligências desajustadas, que se transformam em energia
destruidora. Tal energia é resultante do bloqueio mental pela densidade da
tensão no campo magnético da aura. Ali, então, se imprimem por força da
monoidéia devastadora as construções psíquicas que se convertem em instrumento
de flagício pessoal ou instrumento de suplício alheio, operando sempre no
mesmo campo de vibrações mentais idênticas. Quando essas energias são
dirigidas aos encarnados e sintonizam pela onda do pensamento, produzindo as
lamentáveis obsessões que atingem igualmente os centros da forma, degeneram as
células encarregadas do metabolismo psíquico ou físico, manifestando-se em
enfermidades perturbadoras, de longo curso...
Por essa razão, felicidade ou
desdita, cada um conduz consigo mesmo, graças à direção que oferece ao
pensamento, no sentido da elevação ou do rebaixamento do espírito, direção essa
que é força a se transformar em alavanca de impulsão ou cadeia retentiva nas regiões
em que se imanta.
Refeito do distúrbio inesperado, o
aflito espiritual inquiriu:
— Que se passa? Onde estou? Porque me
vejo coagido a falar o que não gostaria de informar e a ouvir o que não desejo
escutar? Quem são os senhores?
Dando à voz a tônica da bondade que
lhe era habitual, Saturnino obtemperou:
— Todos estamos, meu irmão, queiramos
ou não, na Casa do Pai Celestial. Filhos do Seu amor, deixamo-nos arrastar
pelas correntes da liberdade espiritual ou naufragamos nas ondas revoltas das
paixões, dentro, sempre, porém, de algum departamento do Seu domicílio, que
elegemos pela própria vontade para nossa habitação. Aqui nos encontramos em um
Templo Espírita, de socorro aos que já transpuseram o limiar da imortalidade e
se acrisolam voluntàriamente à retaguarda dolorosa, quando poderiam ensaiar os
primeiros vôos para mais amplos tentames na vida feliz...
E procurando dar ênfase ao encadeamento
das idéias para melhor explicação, esclareceu:
- Cultores das lições de
Jesus-Cristo, buscamos palmilhar a rota por Ele percorrida, abrindo braços e
corações aos que sofrem e ignoram os meios de se libertarem do jugo da
desesperação, meios esses que se encontram neles mesmos, jazendo sob os
escombros do próprio flagelo que a si se impõem. Trouxemos Aldegundes, cujo
corpo repousa na forma orgânica de Mariana, e conduzimos, também, sua
genitora, sua irmã e outros companheiros da vida física, para examinarmos à luz
do amor de Nosso Pai para conosco o amargor que o torna infeliz, procurando
diminuir a intensidade das causas de tal mortificação.
Fez uma pausa - breve, espontânea,
para considerar o efeito produzido pelas palavras no perseguidor de Mariana.
A jovem, por sua vez, docemente
envolvida pela genitora que parecia transfigurada em madona esplendente de ternura, graças às supremas dores suportadas
com amor e resignação, escutava, raciocinando com dificuldade compreensível,
atenta, porém, à explanação.
— Pelo que depreendo — rugiu o
neerlandês —isto é um complô para fazer-me desistir da execução da justiça que
tenho aguardado.
— A justiça — retrucou Saturnino —
alcança o infrator sem a necessidade de novo algoz. As divinas leis dispõem de recursos
reparadores, ante as quais nada fica sem a necessária quitação. Jesus...
— Jesus, Jesus — arrebatou — deixou-se
martirizar...
— Sim — acrescentou Saturnino — e
perdoou aos seus algozes.
— Mas era um Deus — admitiu, irado —,
conforme ensina a Religião.
— Deus? — esclareceu o Mentor —
somente um há. A Religião tradicional se equivoca quando assim o diz. Jesus é o
Filho de Deus, lição viva de amor que todos podemos atingir, pelas
oportunidades que nos ensejou descobrir, oportunidades essas que agora lhe chegam,
concitando-o a se tornar um deus, manifestação
de Deus que “está em tudo e em todos, esperando o desabrochar através da nossa
inclinação para a verdade.
— Mas eu vivo num inferno — reptou,
amargado —, como poderia alcançar Deus se tudo em mim são desejos de vingança
para aplacar o ódio que me estiola a própria razão?
— O inferno é resultante do seu estado
de rebeldia. Na sua recusa ao amor, você se condena ao desespero sem
remissão, enquanto dure o combustível da revolta que você coloca na fornalha
do ódio.
— E os devedores?
— A vida se encarregará deles, agora
ou depois.
Pesado silêncio caiu sobre a sala de
socorro.
Algo asserenado, ele parecia
mergulhar lentamente em acurada meditação.
Fluídos muito diáfanos penetraram o
recinto, como se dirigidos por Agentes Invisíveis, que suavizavam a tensão até
há pouco reinante, a todos beneficiando qual aragem bendita e necessária.
Estranha e refazente calma a todos dominou.
(1)
Pôlder — região pantanosa e baixa,
conquistada ao Mar do Norte e aos lagos Interiores, na Holanda — Nota do Autor
espiritual.
QUESTÕES PARA ESTUDO
1. Por quê Mariana
era perseguida por um obsessor?
2. Que tipo de
união existiu entre Mariana, Mateus e o perseguidor?
3. O que seria a
“psicosfera espiritual” emitida pelo espírito sofredor? Que consequências pode
trazer a uma pessoa esta vibração prejudicial?
4. Que tipo de
“inferno” era esse que se referia o perseguidor?
Bom estudo a todos!!
Equipe Manoel Philomeno